Em julho de 1838, a editora Harper & Brothers, sediada em Nova York, publicou uma obra com o seguinte nome (respire fundo):
A Narrativa de Arthur Gordon Pym. De Nantucket. Contendo os detalhes de um motim e de um assombroso massacre a bordo do brigue americano Grampus, em rota para os mares do sul, no mês de junho de 1827. E mais a história da recaptura do navio pelos sobreviventes, seu naufrágio e a terrível provação pela qual passaram em virtude da fome; seu resgate pela escuna britânica Jane Guy; o breve cruzeiro desta embarcação no Oceano Antártico; sua captura e o massacre da tripulação em um arquipélago no paralelo oitenta e quatro de latitude sul; juntamente com as incríveis descobertas no extremo sul a que essa lamentável calamidade deu origem.
Sim, esse é o título original de A narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket, como ficou conhecido o único romance publicado por Edgar Allan Poe. Na ocasião do lançamento, a autoria do livro foi atribuída ao Pym do título, que, no prefácio fictício, afirma tê-lo escrito com o auxílio do “sr. Poe”. O autor de O Corvo estaria entre os cavalheiros que “expressaram o maior interesse” no relato das aventuras de Pym, e propôs publicá-las de maneira seriada, “sob o manto da ficção”, na Southern Literary Messenger, revista do estado da Virgínia (EUA) por ele editada.
Assim aconteceu. Em janeiro e fevereiro de 1837, duas partes da narrativa apareceram no periódico. A recepção foi tão positiva que, ainda de acordo com o prefácio para a obra, Pym decidiu compilar todas as aventuras e publicá-las em um único volume.
Logo após o lançamento, no entanto, o livro teve uma recepção irregular. “Esta é uma obra extraordinariamente interessante, mais do que qualquer outra coisa que tenhamos lido. É mais maravilhosa do que a mais selvagem das narrativas, e no entanto é apresentada como a sóbria verdade”, exclamou o jornal New York Tribune. Já o New York Mirror sentenciou que “O autor teria feito melhor uso de sua engenhosidade se tivesse preservado a verossimilhança da narrativa. Da forma como está, as aventuras altamente improváveis e sobrenaturais pelas quais seu herói passa logo destroem o interesse do leitor, e revoltam a imaginação”.
Logo se dissiparam as dúvidas de que Poe fosse o verdadeiro autor do livro. Em consequência, as principais críticas referiram-se à decepção por ele causada. A despeito de todos os cuidados para que o relato fosse recebido como verossímil, afirmou-se que o desenvolvimento da história frustrava qualquer possibilidade nesse sentido.
Parte do público também se incomodou com os “excessos” de informações científicas inseridos ao longo do relato, sendo considerados ainda mais descabidos diante do fato de que se tratava de pura ficção. Para muitos críticos, residiria aí, nessa “rasteira” aplicada em leitores, a principal fraqueza da narrativa. Em todo caso, há aspectos envolvendo a concepção da obra — e portanto sua natureza — que consideramos importantes por interferirem nas escolhas realizadas por Poe. Para compreendê-las, coloquemos o autor em foco.
O poder de uma recusa
Podemos afirmar que A narrativa de Arthur Gordon Pym nasceu de uma recusa. Alguns anos antes, Poe havia enviado à Harper & Brothers uma coletânea de contos publicados isoladamente, entre os quais estavam Manuscrito encontrado em uma garrafa, As aventuras sem paralelo de um certo Hans Pfaall e Berenice, entre outros. Por meio de uma carta, a editora recusou o projeto; entre os motivos, afirmou que contos sem conexão aparente não eram vendáveis em um país no qual os leitores tinham clara preferência por romances. A Harper & Brothers também questionou a qualidade “mística e erudita demais” das histórias, que seriam apreciadas apenas por um pequeno grupo, e não pelas multidões.
Isso ocorreu em junho de 1836; meses depois, duas partes de A narrativa… seriam publicadas na Southern Literary Messenger. Poe enxergou a possibilidade de desenvolver uma obra extensa e deu sequência ao trabalho, que acabou adquirido pela Harper & Brothers em 1837 (e publicado somente no ano seguinte). Seria uma história mais longa e de maior apelo popular, também, considerando-se que relatos de aventuras náuticas faziam grande sucesso na primeira metade do século 19 — Robinson Crusoé, o clássico do britânico Daniel Defoe publicado em 1719, ainda era muito apreciado na época.
E Poe, como de costume, precisava do sucesso. O biógrafo Arthur Hobson Quinn nos lembra de que, assim como ocorreu em quase toda a vida do autor, as condições em 1837 eram precárias. Casado com a prima Virginia Clemm e morando com ela e a tia (e sogra) Maria Clemm, ele fora demitido da Southern Literary Messenger em janeiro daquele ano, devido ao comportamento errático e aos excessos de bebida. Decidira, então, tentar a vida em Nova York.
Mas as circunstâncias não favoreceram: 1837 foi o “ano do pânico” nos EUA, quando uma grande recessão econômica avassalou o país. O mercado editorial sofreu severas consequências e não havia oportunidades de emprego na cidade nova-iorquina. Pouco depois, a família zarpou para a Filadélfia.
Verossimilhança e verbetes
Antes de partir, Poe concluiu A narrativa de Arthur Gordon Pym. Ou melhor, pareceu ter concluído, dado que muitos estudiosos consideram a obra inacabada. Seja como for, por alguns meses ele trabalhou intensamente na história do jovem aventureiro de Nantucket.
Como apontaram seus críticos, Poe não economizou detalhes técnicos de modo a assegurar a verossimilhança das peripécias narradas. Sabe-se que, para compor o pano de fundo, ele se serviu de Um relato de quatro viagens aos mares do sul e ao Pacífico (1822-1831), obra publicada em 1832 pelo explorador estadunidense Benjamin Morrell. Vêm daí o vocabulário bastante específico das descrições náuticas e os dados geográficos contidos no livro.
Chamam a atenção, também, os “verbetes” inseridos ao longo da história: trechos em que Poe interrompe a narrativa para deter-se em questões pontuais, explicando-as em detalhes. Por exemplo, uma longa digressão dedicada ao acondicionamento de cargas em embarcações; ou uma pormenorizada explanação sobre o biche de mer, ou pepino-do-mar, bem como de sua comercialização. De fato são passagens que, frutos de um excesso de zelo para com a veracidade, acabam nos afastando do relato.
Mas logo retornamos à história, pois A narrativa de Arthur Gordon Pym é nada menos do que eletrizante. Trata-se de um vórtice de aventuras e horrores cujo ritmo não decai, com muitas das qualidades que consagraram seu autor: a composição minuciosa da escrita, o domínio do tempo da narração, as personagens que se tornam vítimas de seus próprios dilemas, as altas doses de perversidade, o talento para encenar o horror.
Fascinando Lovecraft
Se chamamos a atenção para o nível de detalhes com que a trama se desenvolve, vale destacar, com mais ênfase, a potência imaginativa nela contida. Sem nunca ter feito uma viagem de barco que durasse mais do que alguns dias, Poe imaginou, com impressionante nitidez, uma jornada de meses no mar. Imaginou horrores náuticos de diversas naturezas — as furiosas tempestades, os motins, os naufrágios, a fome e a sede.
Mas há também assombros de outra ordem. Extraordinários, por assim dizer. O fantástico ocupa um pequeno espaço na história, mas é intenso o suficiente para ter fascinado ninguém menos do que H.P. Lovecraft. Fã confesso de Poe, o autor de O chamado de Cthulhu (1928) dedicou algumas linhas entusiasmadas ao desfecho das aventuras de Pym no ensaio O horror sobrenatural na literatura (1927).
Cabe também um comentário a respeito do lugar deste livro na obra integral de Poe. Em certa medida, o texto contradiz os preceitos da criação literária poeana contidos no ensaio A filosofia da composição, publicado oito anos depois, em 1846. Referindo-se à criação de O Corvo, então sua obra mais famosa, Poe tece reflexões sobre a extensão de uma narrativa: “Se qualquer obra literária for longa demais para ser lida em apenas uma sentada, devemos nos contentar com dispensar o imensamente importante efeito derivado da unidade de impressão”. A consideração vale tanto para a prosa quanto para a poesia; textos longos demais perderiam um “elemento artístico vastamente importante, a totalidade, ou a unidade”.
Ora, sendo assim, A narrativa de Arthur Gordon Pym estaria destituído desse elemento. Porque foi a obra em prosa mais extensa publicada por Poe. Entretanto, no próprio ensaio de 1846 encontramos indícios de como seu autor poderia enxergar o livro. “O que denominamos um longo poema é, na verdade, a mera sucessão de poemas breves — ou seja, de breves efeitos poéticos”, afirma ele.
E em sua totalidade, o que seria A narrativa de Arthur Gordon Pym senão uma sequência de episódios, ou até de contos? São amarrados em uma estrutura mais ampla pela presença do narrador-protagonista e das personagens, e pelos mesmos espaços onde se desenvolve a ação, entre outros aspectos. Mas podemos apreender o todo da obra como uma progressão de núcleos narrativos menores e, em consequência, uma acentuação da unidade de impressão tão valorizada por Poe. Esse efeito, em grande parte vinculado ao horror, não se dispersa; apenas se acumula.
Tudo isso dificulta a categorização quanto à forma literária da narrativa. Pela extensão e pelo tempo cronológico, podemos vê-la como um romance, sem dúvida. No entanto, a sucessão de episódios e os “ganchos” para os capítulos seguintes têm qualidade folhetinesca; e as marcações das datas remetem aos diários de viagem (uma impressão reforçada pela intenção de que a história fosse recebida como verdadeira). De minha parte, entendo a obra como uma intersecção dessas classificações. Para simplificar, e aqui não considero o número de páginas, pode-se dizer que A narrativa de Arthur Gordon Pym é uma obra grandiosa — à altura do título original.
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