De que maneira doenças mentais influenciaram obras de horror do passado e como hoje elas são combustível para esse gênero literário?
Michael Myers dispensa apresentações. Figura central da franquia Halloween, o vilão criado pelo cineasta John Carpenter e pela produtora e roteirista Debra Hill frequenta pesadelos desde sua primeira aparição, no filme de 1978 que deu origem à série. Nele, um Myers de apenas seis (sim, 6) anos mata a irmã mais velha com uma enorme faca de cozinha — que, ao lado da sinistra máscara, tornou-se para sempre sua marca. Após o crime, ele é internado em um hospital psiquiátrico, de onde consegue fugir 15 anos depois para prosseguir com a matança. Desde então, a franquia rendeu outros dez filmes, incluindo reboots e novas sequências.
O sucesso de Myers é um bom exemplo da intensa relação entre os distúrbios psiquiátricos e a ficção de horror. Tanto na literatura quanto no cinema, há inúmeros casos de pessoas aparentemente comuns que, por conta de alguma psicopatia, revelam-se verdadeiros monstros. E com frequência esses antagonistas são mais assustadores do que quaisquer outros de origem sobrenatural, como vampiros, zumbis ou lobisomens. No entanto, nesta coluna não pretendemos traçar perfis de psicopatas e de serial killers; nossa intenção é verificar em que medida os distúrbios psiquiátricos se tornam, graças às hábeis mãos de certos escritores e escritoras, os verdadeiros objetos do horror.
Medo seguro
Em primeiro lugar, cabe retomar a concepção sobre literatura de horror sempre defendida neste espaço: trata-se do conjunto de narrativas ficcionais elaboradas para causar o efeito estético do horror, do medo ou de emoções relacionadas. E como nos lembra Edgar Allan Poe no ensaio A filosofia da composição (1846), efeito estético é resultado; é consequência de um meticuloso processo de construção retórica, em que cada elemento deve ser cuidadosamente situado e encaixado, como a peça de uma poderosa maquinaria. Vem dessa composição o “medo seguro” que sentimos diante de uma obra de ficção. Ou seja, a ameaça do monstro se extingue no momento em que fechamos o livro ou desligamos a televisão.
O próprio Poe esteve entre os pioneiros na exploração de distúrbios psicológicos na ficção de horror. Por mais anacrônica que essa afirmação possa soar — dado que a obra do autor de O Corvo precede em muito a psicanálise e as pesquisas psiquiátricas que ajudaram a explorar o campo da saúde mental —, é inegável que certas figuras poeanas sofram de graves perturbações psicológicas. É inegável também que esse traço das personagens as conduza, ou faça com que conduzam suas vítimas, para o epicentro do horror. Alguns exemplos são o sádico e transtornado protagonista de O gato preto, o melancólico Roderick Usher de A queda da Casa de Usher e o potencialmente esquizofrênico narrador de William Wilson.
Recalque e paranoia
Outro pioneiro nesse campo, inclusive anterior a Poe, foi o alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822). É dele o conto O Homem da Areia (1816) analisado por Freud no importante ensaio Das Unheimliche (no Brasil recentemente traduzido como O Infamiliar), em que o fundador da psicanálise se detém naquilo “que diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror”. Tomando como base a narrativa de Hoffmann — que trata de Natanael, um rapaz que acredita ser perseguido ao longo da vida por uma sinistra figura —, Freud reflete sobre o retorno de algo há muito conhecido pelo ser humano, mas que por algum motivo se tornou estranho devido a um processo de repressão ou recalque: trata-se do “infamiliar” do título. Além disso, o psicanalista austríaco enxerga, no protagonista de O Homem da Areia, questões como paranoia e medo da castração.
O objetivo aqui, entretanto, não é colocar heróis e anti-heróis da ficção de horror no divã. Antes, é entender como autores e autoras foram incorporando conscientemente os distúrbios psicológicos em suas histórias e personagens, transformando-os em matéria-prima para a criação literária. A norte-americana Shirley Jackson oferece um ótimo exemplo desse procedimento. No romance A Assombração da Casa da Colina (1959) — em que quatro pessoas reúnem-se em uma mansão para investigar fenômenos sobrenaturais —, a fragilidade mental da protagonista Eleanor Vance é um dos muitos trunfos da composição do horror; talvez o principal. Não por acaso, de acordo com a biógrafa de Jackson, Ruth Franklin, a autora chegou a ser chamada de “Virginia Werewoolf” (em referência à inglesa Virginia Woolf, cujo sobrenome significa “lobo”, e que na brincadeira virou “Virginia Lobisomem”). A comparação tem fundamento. No romance, a imersão psicológica é ora delicada, ora brutal, em movimentos vertiginosos que, por vezes, lembram aqueles de Woolf, ícone do modernismo literário e reconhecida como pioneira na exploração da psique de suas personagens.
Com Shirley Jackson, essa exploração expande os efeitos do horror, pois acentua a ambiguidade do relato. Recursos retóricos usados até a exaustão em toda a história da literatura, os confrontos “realidade X delírio” e “realidade X sonho” são eximiamente manuseados pela autora. Tudo se torna mais complexo — e verossímil — pelo fato de Eleanor manifestar fortes oscilações de temperamento, eventuais alucinações e frequentes ataques de desespero. A impressão é a de que ela sofre de algum tipo de depressão.
Outro exemplo de horror causado por transtornos psicológicos, sem dúvida o mais famoso, é o romance O Iluminado, de Stephen King. Publicado originalmente em 1977, traz a história de Jack Torrance, aspirante a escritor que luta contra o alcoolismo e aceita o emprego de zelador de inverno no isolado hotel Overlook, para onde vai com a esposa, Wendy, e o filho Danny. Uma vez lá, os três descobrem que o lugar tem personalidade própria e tenta manipulá-los, ou mesmo possuí-los.
Por sua fragilidade mental e pelos problemas com a bebida, Jack torna-se a vítima ideal. Aos poucos, ele é tomado pelos espectros que habitam o hotel e vai enlouquecendo, tornando-se mais e mais perigoso para a mulher e o filho. Na adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick, um clássico incontestável do horror, as perturbações psicológicas do protagonista (Jack Nicholson) ganham ainda mais destaque, ao passo em que o elemento sobrenatural perde terreno.
Os males do século
Atualmente, observamos um crescimento no número de obras literárias de horror cuja essência são as doenças mentais. Algumas hipóteses ajudam a explicar o fenômeno. Em primeiro lugar, temos o aumento da incidência de transtornos psicológicos na sociedade atual. “Pela abrangência, a depressão e a ansiedade podem ser consideradas as principais doenças do século 21”, afirma a psiquiatra Maria Isabel Lourenção, de São Paulo.
De acordo com a médica, as pessoas estão cada vez mais sozinhas, e portanto individualizadas, o que as leva a afundar cegamente na profissão, a recorrer à bebida ou a adotar outros comportamentos nocivos. “Existem estudos que indicam que, em 2050, a depressão será o principal motivo de afastamento do trabalho”, alerta Lourenção. Uma vez que estejamos mais ansiosos, depressivos, neuróticos ou paranóicos, muitos de nós queremos escrever e ler a respeito; e ficcionistas de horror participam ativamente desse movimento, ao se apropriarem das angústias contemporâneas.
Nota-se, ao mesmo tempo, um esgotamento de velhos temas e fórmulas da composição literária do horror. Seja pelo excesso de obras que os utilizam, seja devido às transformações pelas quais passa a cultura ocidental — os demônios, os fantasmas e os zumbis, entre outros, já não têm a mesma força de antes. Ainda exercem grande apelo ao imaginário das pessoas, sem dúvida, mas uma nova história centrada nesses elementos dependerá de muito engenho e pesquisa para ser eficaz. Caso contrário, é grande a chance de ela transmitir ao leitor e à leitora a triste sensação de déjà-lu (“já lido”).
O romance Na escuridão da mente (2015), do norte-americano Paul Tremblay, oferece um ótimo exemplo dessa combinação entre engenho e pesquisa. A história gira em torno da família de Marjorie, uma garota de 14 anos que começa a manifestar sintomas de esquizofrenia. Os médicos se mostram incapazes de conter a ruína de sua sanidade, e um padre oportunista sugere um distúrbio de outra ordem: possessão demoníaca.
Até aí, absolutamente nada de novo. Mas impressiona a costura elaborada por Tremblay entre os depoimentos de Merry, a irmã de Marjorie, um reality show criado para acompanhar o exorcismo e as assustadoras oscilações de humor da garota, que nos fazem desconfiar de fato de esquizofrenia. Ao longo de quase todo o romance, mantemo-nos em estado de suspensão, aflitos, incapazes de decidir sobre o que está de fato acontecendo — portanto, fascinados com a história.
Cérebro: a fronteira final
A propósito, quando se trata de distúrbios psicológicos e horror, o termo “fascínio” é duplamente oportuno. Porque além da mórbida atração comumente exercida pelas narrativas sinistras, há o fato de o cérebro humano ainda ser, em grande medida, um fascinante mistério. “Por mais que a psiquiatria venha avançando no diagnóstico e no tratamento de certas doenças, estamos lidando com a parte mais complicada do corpo, que é o cérebro”, pontua Lourenção. “Não podemos realizar pesquisas invasivas, como biópsias. Por isso, ainda há muitas coisas a serem descobertas”, completa a psiquiatra.
Outro motivo ajuda a explicar o fascínio exercido por essas histórias: a empatia. É o que nos leva a imaginar o quão medonho seria padecer de uma doença como esquizofrenia, no caso de Marjorie, de depressão aguda, no caso de Eleanor Vance, ou de alcoolismo, no caso de Jack Torrance. Assim, por mais paradoxal que seja, a leitura dessas obras pode despertar em nós o que temos de mais humano: o colocar-se no lugar do outro. Algo que Michael Myers jamais seria capaz de compreender.
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