Entenda de que maneira o medo se faz presente nessas narrativas — que nem sempre estiveram ligadas ao universo infantil
Você se lembra da primeira vez em que se apavorou com uma história? De algum conto lido por sua mãe ou seu pai que tenha gerado algum pesadelo memorável? Ou um desenho animado que, por algum motivo, deixou seus olhos abertos a noite toda? Com certeza, nos porões da sua memória ainda está aquela bruxa má, o ogro medonho ou o duende cruel capaz de atrapalhar seu sono até hoje, se você pensar neles por muito tempo.
O tempo, aliás, é a marca dos contos de fadas. Pois são histórias que desde sempre ouvimos dos mais velhos — que, por sua vez, ouviram-nas de bocas ainda mais antigas. Nessas narrativas, o medo é um ingrediente fundamental, já que sua própria estrutura (personagens empurrados pelo destino rumo ao desconhecido) é bastante assustadora. Além disso, elas costumam carregar muitos dos elementos que hoje constituem a ficção literária de horror, como abandono, violência, assassinatos, canibalismo, criaturas monstruosas, entre tantos outros.
Cabe lembrar que nem sempre os contos de fadas foram relacionados especificamente ao universo infantil. Nos primórdios, eram narrativas compartilhadas por adultos e crianças em volta da fogueira ou em atividades que exigiam muito tempo, paciência e habilidades manuais dos trabalhadores.
Horror mais explícito
As versões mais antigas desses relatos foram registradas por escritores como o francês Charles Perrault e os Irmãos Grimm, da Alemanha, que buscavam formas de preservar a cultura popular da região onde viviam. Nesse processo, porém, muitas das histórias foram atenuadas devido ao senso moral dos autores, ao contexto cultural ou às especificidades das versões que chegaram às mãos desses escritores.
“Antigamente, o horror era mais explícito nos contos”, explica Cristina Casagrande, pesquisadora da literatura de fantasia e especialista em J.R.R. Tolkien, autor de O Hobbit e Senhor dos Anéis. “Isso foi sendo suavizado para não assustar as crianças, mas, de certa forma, o horror sempre está lá. A primeira versão dos Irmãos Grimm para A Gata Borralheira, por exemplo, mostra as duas irmãs cortando partes dos seus pés para encaixar no sapatinho.”
Com efeito: presentes no imaginário coletivo, os contos de fadas receberam muitas versões e releituras ao longo do tempo. Existem desde as encantadoras animações da Disney até as versões mais assustadoras, como o filme Maria e João, de Oz Perkins, lançado em fevereiro 2020. No entanto, a tensão, o medo e o estranhamento são constantes, mesmo nas representações mais leves.
O monstro de Perrault
De acordo com o pesquisador Paulo César Ribeiro Filho, doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH - USP), a experiência do horror nos contos de fadas tem algumas explicações possíveis. Uma delas é a consequência da violação de uma proibição. “Nesses casos, o descumprimento de uma ordem traz consequências cruéis e a experiência do terror se justifica como punição exemplar pela quebra de um tabu”, afirma ele.
Um ótimo exemplo dessa dinâmica é o conto Barba Azul, na versão do francês Charles Perrault (1628 - 1703). O personagem-título é nada menos do que assustador: um conde conhecido pelas posses, pela crueldade e pelas feições esquisitas, entre as quais se destaca a barba que lhe rendeu o apelido. Chama a atenção, acima de tudo, o fato de suas seis ex-esposas terem desaparecido.
Certa vez, Barba Azul visita um vizinho e demonstra interesse por suas filhas. Como a fama o precede, a família fica apreensiva; mas o conde se revela uma figura surpreendentemente afável e acaba convencendo a caçula a se casar com ele. A moça então vai viver em seu exuberante castelo.
Um dia, o marido avisa a jovem esposa que vai viajar. Ele a orienta a ficar totalmente à vontade no castelo, mas a proíbe de entrar em um gabinete específico. Claro que a moça não resiste. Ao abrir o aposento, ela encontra uma verdadeira câmara dos horrores: as seis mulheres mortas, penduradas pelas paredes. Quando Barba Azul retorna, descobre tudo graças a uma chave mágica, com manchas de sangue que não podem ser limpas. Tem início, aí, uma das sequências mais tensas de todo o fabulário universal; mas evitaremos o spoiler.
De bom cristão a satanista
Como qualquer outro conto de fadas, Barba Azul tem origem difusa. A inspiração mais provável para o personagem foi uma figura de fato apavorante: o marechal (e não conde) francês Gilles de Rais. Também conhecido por Barba Azul, ele lutou contra os ingleses ao lado de Joana D’Arc no século 15; depois, no entanto, transformou-se em um dos mais cruéis assassinos de que se tem notícia. São atribuídas ao marechal a tortura e a morte de centenas de crianças, ocorridas no Castelo de Tiffauges, de sua propriedade.
O Barba Azul histórico é figura central de um dos romances mais poderosos do decadentismo francês: Nas Profundezas, do francês J.-K. Huysmans. Publicada em 1891, a obra tem como protagonista o escritor Durtal, pesquisador da biografia do enigmático Gilles de Rais, que “foi bravo capitão e bom cristão, e se tornou subitamente sacrílego e sádico, cruel e covarde”; um “verdadeiro satanista”. Na pena de Huysmans, as cenas de tortura e brutalidade perpetradas pelo Marechal são verdadeiramente aterradoras; e, à sua maneira, o conto de Perrault espelha essa monstruosidade.
Gradação do horror em Chapeuzinho Vermelho
Outra marca dos contos de fadas é a já mencionada gradação do horror em diferentes versões. A pesquisadora Cristina Casagrande lembra que, nesse universo, “o horror se encaixa no perigo que os personagens correm, e pode ser mais ou menos brando, dependendo da proposta do autor”. A história de Chapeuzinho Vermelho torna evidente tal variação.
O registro mais antigo do conto também é a versão de Perrault, publicada pela primeira vez em 1697. Nela, Chapeuzinho é descrita como uma menina linda, que vai levar bolinhos e manteiga para a casa da avó e é instruída pela mãe a não se desviar. No caminho, encontra o lobo que tem vontade de comê-la na mesma hora, mas se contém porque sabe que a floresta está cheia de lenhadores. Então, a fera começa a conversar com ela e, aproveitando-se da inocência da menina, convence-a a sair da trilha e descobre a localização da casa da avó.
O lobo vai para lá, identifica-se como Chapeuzinho, devora a senhora e se deita em sua cama. A menina chega e, ao ouvir a voz da “avó”, antecipa o perigo, mas considera que a velhinha esteja gripada e entra na casa mesmo assim. Vestido com a camisola da avó, o lobo convida Chapeuzinho para deitar-se com ele. A menina se despe e, embaixo das cobertas, espanta-se com a figura que encontra, dando início a um dos diálogos mais memoráveis que existem.
A repetição da estrutura (“Minha avó, que braços grandes você tem!” e “É para abraçar você melhor, minha neta...”) tem forte efeito. As respostas evasivas do lobo constróem uma enorme tensão, em meio à qual o leitor acompanha a menina finalmente se dando conta de que a criatura deitada na cama não é sua avó. O horror atinge o clímax quando Chapeuzinho repara nos dentes do lobo, que retruca “É para comer você!” e a devora em seguida. O conto termina bruscamente, disparando uma espécie de susto. O leitor precisa lidar sozinho com o fato de que, sim, o que ele temia aconteceu e a menina foi comida pelo lobo.
Um final menos infeliz
A versão contada pelos Irmãos Grimm em 1812, no entanto, indica uma suavização. A narrativa transcorre mais ou menos da mesma forma que em Perrault, mas não termina quando Chapeuzinho é devorada. De barriga cheia, o lobo adormece e seu ronco alto chama a atenção de um caçador que estava nas redondezas. O homem imagina que o lobo tenha devorado a velhinha que morava na casa, e abre a barriga do animal com a tesoura, salvando tanto Chapeuzinho quanto a avó. Para punir a fera, Chapeuzinho enche sua barriga de pedras grandes.
O lobo acorda e tenta fugir, mas suas pernas não aguentam o peso; acaba sendo morto e esfolado pelo caçador, que leva sua pele para casa. Ainda que suavizado pelo final feliz de Chapeuzinho, o conto preserva a tensão do diálogo entre o lobo e a menina, e o triste fim do antagonista mantém uma certa morbidez.
Já em “A história da vovó”, uma versão um pouco posterior a essa, coletada por um autor anônimo e publicada por volta de 1885, o horror é novamente acentuado. O lobo não só come a avó, como reserva na despensa um pouco da carne e do sangue para oferecer a Chapeuzinho. Após o tétrico jantar, o animal chama a menina para deitar-se na cama com ele, mas antes a instrui a se despir. Enquanto o faz, Chapeuzinho pergunta o que fazer com cada peça de roupa, e o lobo diz que ela pode atirar no fogo, pois não precisará mais dos itens.
Ingênua, a menina obedece e se deita nua, iniciando novamente o diálogo que conhecemos bem. Mas, nessa versão, as respostas tornam óbvia a associação com um corpo masculino, explicitando a natureza sexual da investida do lobo. A menina, por sua vez, prova que não é boba: convence o lobo a deixá-la sair para ir ao banheiro e, uma vez lá fora, aproveita a oportunidade e corre de volta para casa. Assim, apesar de ter comido a carne da própria avó, Chapeuzinho consegue se salvar.
Lobo mau de verdade
Existem indícios de que o conto foi inspirado na história do agricultor alemão Stubbe Peeter, mais conhecido como Lobisomem de Bedburg, que viveu no século 16. Assim como Gilles de Rais, a figura era assustadora: foi acusado de desmembrar animais, violar sexualmente diversas jovens, assassinar 14 crianças, duas mulheres grávidas e seus fetos e alimentar-se com sua carne e sangue.
Muitas dessas atrocidades aconteciam na floresta e alguns relatos indicavam que o assassino usava uma pele de lobo enquanto perseguia suas vítimas. Em seu julgamento, Peeter assumiu os crimes e confessou que, ainda jovem, fez um pacto com o diabo e ganhou um cinto mágico que o transformava em lobisomem. Mesmo sendo provável que tal confissão tenha sido obtida sob tortura, o horror dos acontecimentos certamente deixou marcas profundas no imaginário coletivo da época.
Triplo suicídio
O estudioso Paulo César destaca, ainda, o uso de passagens e descrições aterrorizantes (macabras, escatológicas) nos contos de fadas como uma espécie de “potencializador patético”. Ou seja, um recurso para intensificar trechos que descrevem o sofrimento das paixões, os absurdos que se faz por amor ou por outro sentimento. “É o que vemos no desenterrar da cabeça decepada do homem amado em O elfo da rosa, de Hans Christian Andersen; ou no triplo suicídio dos súditos da princesa Maravilhosa em O Carneiro, de Marie-Catherine d'Aulnoy: na tentativa de salvá-la, providenciando uma língua e um coração como prova de sua morte ao rei, o cachorrinho de estimação se mata, o macaquinho pula da árvore de cabeça pra baixo e a escrava moura corta a própria garganta com uma faca. Mas não adiantou de nada”, explica Paulo.
A lista de elementos, personagens e eventos assustadores nessas histórias é realmente longa, e relacioná-los exigiria muitos artigos como este. Por ora, cabe concluirmos que maravilhamento e assombro caminham lado a lado desde tempos imemoriais. E cabe, acima de tudo, curtirmos o arrepio na espinha que um conto de fadas pode causar em nós.
*Texto escrito em parceria com Nathália Xavier Thomaz
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