Estudos atribuem nosso pavor a um fator essencial: a desconfiança
Para milhares e milhares de fãs de horror, o evento mais importante de 2017 é o lançamento da nova adaptação cinematográfica do romance It ("A Coisa"), de Stephen King, publicado originalmente em 1986.
E há motivos em dobro para comemorar, uma vez que a Warner resolveu separar o enredo — que se estende por 900 páginas — em duas partes. Isso mesmo, dose dupla de Pennywise (o palhaço de King, não a banda punk) para todos nós. Como se não bastasse, o trailer oficial fez os tambores rufarem ainda mais alto.
Toda essa expectativa não é à toa. A primeira adaptação, datada de 1990, é considerada um verdadeiro clássico** do cinema de horror por esses milhares de fãs — e se tornou uma obra assustadora mesmo para quem não dá tanta bola para o gênero.
Isso acontece porque a força motriz do livro de King é algo que nos atormenta há muito tempo: a coulrofobia, ou a aversão a palhaços. O tema voltou a ser destaque na imprensa, em 2016, quando uma estranha “onda” de palhaços com supostas más intenções espalhou-se pelas ruas dos EUA e no Brasil.
No entanto, como o espaço aqui é dedicado à ficção, agora pretendemos compartilhar com você um pouco da tradição histórica e literária dessa mistura entre fascínio e horror que palhaços despertam em nós. Porque isso vem de muito antes de Pennywise aparecer dentro daquela boca de lobo para aterrorizar crianças do Maine — e pessoas de todo o mundo.
Comic relief
Culturalmente, a trajetória do palhaço remete a tempos imemoriais. Podemos encontrá-lo nas mais variadas civilizações, como Egito antigo, China imperial, Roma e Europa medieval — incluindo aí os povos ameríndios.
Em todas elas, o papel dessa figura tragicômica sempre foi o de entreter. E não só por meio de caretas e mímicas, mas também de músicas, poemas, sátiras, relatos orais e comédia teatral. O bufão, também conhecido como “bobo da corte”, era um bom exemplo disso e serviu de recurso retórico para muitos autores, sendo um deles Shakespeare — o bardo inglês utilizou esse bufão para intensificar a teatralidade e o efeito dramático de peças como Macbeth (1606), Antônio e Cleópatra (1607) e Hamlet (1609).
Nelas, o palhaço antigo funciona como uma espécie de comic relief ("alívio da comicidade"), ajudando a amenizar o espanto e a complexidade de atos mais intensos durante as cenas. Ele é a ponte pela qual fugimos do horror para o humor — e muitos especialistas afirmam vir daí a aura macabra que passa a cercar o palhaço nos séculos seguintes.
Uma vida muito mais trágica do que cômica
Já o palhaço como estrela circense — tal como o entendemos hoje, com fantasias pitorescas e um arsenal de peripécias — tem suas origens no século XIX. Mais precisamente graças a figurões como o britânico Joseph Grimaldi, hoje considerado o entertainer mais popular da era Georgiana inglesa.
A vida de Grimaldi foi, ela própria, um espetáculo bem mais trágico do que cômico. Criado por um pai tirano, ele sofria de depressão — que foi intensificada pela morte prematura da esposa e pelas dores constantes causadas pelas performances em palco (as quais envolviam tombos e outras pancadas violentas).
Tivesse vivido uma vida confortável e pacata, Joseph Grimaldi não teria inspirado um grande conterrâneo seu: Charles Dickens. O romancista inglês serviu-se do ator para compor um dos mais famosos palhaços literários de que se tem notícia: o cômico e algo assustador senhor Pickwick, de The Pickwick Papers (1837). Ganhava contornos, a partir de então, a figura do palhaço como algo além do que um mero animador.
A bengalada fatal
Enquanto isso, do outro lado do Canal da Mancha, cores sinistras também foram misturadas ao antes jovial retrato do palhaço. Referimo-nos ao que aconteceu com o ator franco-tcheco Jean-Gaspard Deburau, o mais celebrado pierrot e mímico de sua época.
Em certo dia de 1836, quando já era uma figura de enorme sucesso nos palcos de Paris, Deburau passeava tranquilamente com a família pelas ruas da cidade. Foi, então, abordado por um garotinho — não se sabe ao certo se para festejá-lo ou ofendê-lo. Contrariado, o ator deu uma violenta bengalada no menino, que acabou por falecer.
Foi um golpe duríssimo também nos grandes palhaços. Assim como Grimaldi, Deburau teve a vida pessoal destrinchada por conta da fama. E a distância entre o que faziam no palco e o que eram na intimidade serviu para alimentar a impressão de que, por trás da maquiagem, das máscaras e das cambalhotas, havia homens melancólicos, atordoados e mesmo perigosos.
Tal contradição passou a inspirar artistas de todas as áreas, e não apenas escritores; Pagliacci (1892), a famosa ópera de Ruggero Leoncavallo, é exemplo disso.
Versão contemporânea do “homem do saco”
Já no Brasil, algumas lendas urbanas puseram ainda mais lenha na assombrosa fogueira da coulrofobia. Lendas bem recentes, por sinal, surgiram na mesma época em que câmeras de segurança dos EUA flagraram as aparições pelas ruas. Por aqui, os boatos foram igualmente assustadores, pois rezavam que crianças estariam sendo raptadas por homens vestidos de palhaço que queriam roubar seus órgãos.
Seriam uma versão moderna do "homem-do-saco"? Não se sabe. O fato é que, graças a tudo isso, estamos cada vez mais coulrofóbicos. Basta mostrar uma imagem de um palhaço a uma criancinha: por mais inofensiva que essa imagem seja, é grande a possibilidade de ela causar o oposto de um sorriso.
Tanto é que, hoje em dia, há vários estudos científicos sobre o assunto. E a maioria atribui o nosso pavor a um fator essencial: a desconfiança. Porque jamais sabemos o que está por trás das máscaras — se alguém bonzinho e realmente disposto a divertir, ou se alguém com intuitos menos solares.
E é essa desconfiança que, nas mãos de mestres como Stephen King, transforma-se em precioso material para a ficção de horror. A obra de 1986 e o filme de 1990 são provas disso. Agora só resta saber se o que virá por aí, no dia 07 de setembro, tornará a sombra de Pennywise — já imensa — ainda mais densa. Até lá, cuidado com as bocas de lobo.
*Artigo escrito em parceria com a escritora, pesquisadora e gamer Amanda Reznor.
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