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"A corneta", de Leonora Carrington: longe das normas, próximo da genialidade

Foto do escritor: Oscar NestarezOscar Nestarez

A Gigante, obra de 1947 de Leonora Carrington que está na capa de 'A corneta' — Foto: Reprodução/Acervo Leonora Carrington
A Gigante, obra de 1947 de Leonora Carrington que está na capa de 'A corneta' — Foto: Reprodução/Acervo Leonora Carrington

Vez ou outra, durante nossas caminhadas pelos terrenos às vezes áridos da literatura, tropeçamos em pedras que descobrimos serem preciosas. A corneta, romance da inglesa/mexicana Leonora Carrington, é um exemplo indiscutível. Publicado em 1974, o livro já havia me sido indicado por amigos e amigas em cujos gosto e critério confio, mas só consegui lê-lo recentemente. E que bom que o fiz: a obra é uma verdadeira celebração à imaginação e à excentricidade.


Não que A corneta precise de exaltação. O livro já é considerado um clássico, ainda que menor. Está enquadrado no grande campo da literatura fantástica, embora seja a epítome de um surrealismo tardio — movimento ao qual Carrington, inclusive, acabou se vinculando como pintora. Tardio, sim, mas de jeito algum desatualizado. Tanto na obra pictórica quanto na literária, Carrington apaga qualquer limite rígido entre ideias e imagens, que se encadeiam como se pertencessem umas às outras, como se fossem uma coisa só — à maneira de quimeras e outras entidades que surgem em seus quadros.


No romance, a ausência de limites marca tanto a estrutura quanto o enredo. A corneta é, a um só tempo, uma narrativa cômica, policial, dramática, mitológica e por vezes assustadora. Quanto ao enredo, a história narrada pela protagonista Marian Leatherby é de uma liberdade imaginativa sem precedentes. A começar pela própria personagem: do alto de seus 92 anos, Marian tem credenciais para ser uma das protagonistas mais excêntricas da literatura do século 20. E a excentricidade, aqui, é um projeto estético. Como observa a polonesa Olga Tokarczuk no posfácio da edição brasileira, é excêntrico tudo aquilo que está fora do centro, portanto longe de normas e padrões.


Longe das normas Marian está. Quase surda e sem nenhum dente na boca, ela mora com o filho, a nora e um neto, e passa os dias alienada do mundo ao redor, entretida apenas com uma galinha que bota ovos em sua cama, com dois gatos de estimação e com Carmella, sua melhor amiga. Ela sonha em ir embora para a Lapônia, onde seria conduzida em um trenó puxado por cachorros. É Carmella que dá a Marian a corneta do título, o que permite a ela ouvir o plano do filho e da nora de a internarem num asilo.


Assim fazem e a história começa de fato. Marian é enviada à “Fraternidade Poço de Luz”, um complexo com chalés em forma de bota, cogumelos, vagões ferroviários, iglus e até uma múmia egípcia. Há apenas mulheres idosas por lá, e o lugar é comandado pelo casal Gambit — ele é uma espécie de líder de seita, submetendo as hóspedes a uma rigorosa rotina de exercícios físicos e psicológicos de acordo com uma doutrina bizarra, o “Cristianismo interior”.


Cada personagem que surge tem sua porção de excentricidade. Claude la Checherelle é uma marquesa que vive lembrando de suas aventuras em guerras; Veronica Adams é uma pintora que, apesar de cega, passa os dias preenchendo rolos de papel higiênico com sua arte; Natacha Gonzalez diz ouvir vozes; Georgina Sykes, que se torna amiga de Marian, é uma espécie de detetive na história. Outras vão chegando, e é com este fascinante grupo de senhorinhas que o enredo se desenvolve, em certo ponto se concentrando em um assassinato.


Pairando acima delas está a figura mítica da freira piscando. Marian a vê em um quadro no refeitório do asilo no mesmo instante fica fascinada por ela. Quando Christabel Burns, uma das mulheres mais misteriosas do asilo, entrega a ela um livro sobre a história da freira, A corneta se encaminha para uma outra dimensão — cósmica, por assim dizer. E assume sua vocação ferozmente subversiva. A história da freira, uma mulher do século 18 envolvida com alquimia, bacanais e a busca pelo Santo Graal, desperta nas mulheres do asilo uma compreensão maior sobre o atual estado de coisas: o mundo na mão dos homens caminha rápido para a ruína. Desde que Deus se impôs (ou foi imposto) à Deusa, tudo decai.


Assim, o grupo de personagens se torna um “coven de bruxas” com o intuito de reorganizar a metafísica do mundo por meio da busca do próprio Graal, e A corneta desponta como uma obra feminista de imensa originalidade. O próprio planeta Terra acompanha essa reconfiguração. Sua posição se alterna no cosmos de forma que ele passe por uma nova era glacial — o terço final da história ocorre sobre intensas nevascas.


E que façanha Carrington colocar como protagonistas desses movimentos cósmicos um grupo duplamente marginalizado; além de mulheres, são idosas. Carmella, a amiga de Marian, é a estrela mais cintilante dessa constelação. É ela quem, com uma imaginação portentosa, elabora planos conspiratórios e será ela quem viabilizará a revolução final, graças ao fato de ter ficado rica — apenas assim lhe será permitida a mobilidade necessária para assumir a liderança. O desfecho de A corneta é apoteótico, com a montanha literalmente vindo às novas “Maomés”, as irresistíveis soberanas da nova ordem.


Em sua vida, Leonora Carrington buscou a rebelião de um novo mundo. Nascida no interior da Inglaterra em 1917, logo se revelou uma artista plástica de notável talento — assim como na escrita, sua pintura se alhinhava ao ocultismo e à alquimia, ao sentido transformador dessas duas práticas. Com o tempo, se aproximou de outros grandes artistas de vanguarda, como Max Ernst (com quem se relacionou), Joan Miró e Salvador Dalí. O espírito transgressor resultou em problemas com a família, com quem teve sérios conflitos, chegando a ser internada em um manicômio. Nos anos 1940, fugiu para o México, onde passou o restante da vida. Lá se engajou no movimento de libertação das mulheres e seguiu produzindo. Faleceu em 2011, reclusa, pouco depois de completar 94 anos — saudavelmente excêntrica, a salvo das normas.


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